A poesia, voz das paixões,
clamor das visões, é a verdadeira espada do espírito literato, mesmo que
isolado no seu mundo por um mero obstáculo físico, ele, o vate, se conecta como
um fantástico Dom Quixote de antena sensivelmente em riste, na repentina defesa
da vida e da paz. O aguerrido poeta Lourival Veras pintou, recentemente, uma
bela crônica com cortante indignação, fina ironia e incisiva sublevação
“Violência em Crateús: quem se importa?!” que começa assim: Tá lá o corpo estendido no chão! 14
furadas! E afirma: “Violência é morte matada. E essa, benza deus!, quase
não vemos por aqui”. Foi um ser humano e não um indigente... Se indigna com o
descaso da população.
Fico a pensar na narrativa do
poeta e na condição humana, que nos faz agir assim. Será o potencial biológico
de agressão preservado em nossa parte animal, refreada pela longa evolução ou
uma atitude apreendida socialmente desde a lei de talião, do dente por dente e
olho por olho?
Não faz muito tempo, uma
delegação de escritores de Academia de letras de Crateús foi à Teresina,
capital do Piauí, em busca dos dados iniciais de nossa história. A surpresa
ficou por conta de caixas e mais caixas com amarelados papéis, no antigo prédio
do Instituto Histórico e geográfico- IHG, confirmando que a Villa Príncipe
Imperial piauiense, já quase cearense, não passava de um caso de polícia. Versa
um trecho do poemeto de Raimundo Cândido sobre o Crateús de então: “Desde lá,
que se perdem as esporas, / e ganham em incitamento e júbilo. / Aqui,
subtrai-se o bridão e o estribo. / E nunca mais se reverenciou a Oeiras. // Nem
o calor do sopro monárquico / reina mais na remota Príncipe imperial, / a
poeirenta Villa, que nunca se dobrou, / nem ao ferro nem ao fogo da lei.”
E sobreveio o cangaço, oriundo
desta remota época. Lê-se, no livro Rastro de uma Caminhada do Pe. Heleno, na
página 130: Entre 1871 e 1874 o cangaço se fez presente em Crateús, capitaneado
por Manoel Ribeiro de Melo, desertor do 14º Batalhão de Infantaria. Nos Livros:
Meus Avós de Raimundo Raul Correia Lima, no Bacamarte dos Mourões de Nertan
Macêdo e no País dos Mourões, de Gerardo Melo Mourão, confirma-se a epopeia
sangrenta da guerra fraticida entre os Melos e os Mourões, nos sertões de
Crateús.
Uma sequência de destemidos
crateuenses, como os mandacarus do sertão, vai brotando até chegar ao
cangaceiro Alexandre da Silva Mourão IV, juntamente com seu irmão José de
Barros Mourão (denominado “O Cascavel”, que amargou anos de prisão na horrorosa
cadeia municipal de Crateús, situada no prédio quadrado da atual prefeitura, aonde
veio a falecer) usavam os incansáveis Bacamartes de boca-de-sino, cuspindo fogo
e nutrindo um desprezo profundo pelos soldados do governo.
O Governador da Província,
José Martiniano de Alencar, tinha ojeriza aos cangaceiros que não rezavam pela
sua cartilha (Partido Liberal) e a pedido de Dom Pedro II, decreta a destruição
dos Mourões de Crateús, a terra de criminosos, de coito de bandidos, país de
facínoras e valentões cangaceiros ferozes e desalmados. O 2º Tenente de
Artilharia Félix Bandeira, com uma volante de 40 praças, andou no encalço dos
Mourões, pelos lombos da Serra da Ibiapaba e nos descampados dos Sertões, até
cansar. Relata o Tenente a seu chefe, o Pe. Benze-cacete, como o chamava o bandoleiro
Mourão IV, em 02/05/1835: “... continuei minha marcha e corri todos esses
Sertões de Crateús, porém não foi possível achar nem ao menos notícias dos facinorosos
e, fazendo ponto nesta Vila, recebi um recado dos ditos, mandando-me desafiar,
para o campo da Fazenda Jardim, onde me esperavam para se bateram comigo e,
aceitando eu este desafio, mandei somente 20 soldados a cavalo, deixando o
restante a pé, e apresentei-me no distante campo, não encontrei pessoa alguma...”
O militar engoliu a artimanha e, mais uma vez, os Mourões fugiram.
Até o Presidente da província
do Piauí, Brigadeiro Manoel de Souza Martins, Barão da Paraíba, que proclamara
a independência de Oeiras, queixava-se do fato de que os Mourões de Crateús
serem batutas na cabala eleitoral, agindo eficazmente nas eleições populares,
conseguem ser camaristas, Juízes de Paz, Municipais e Promotores, não
obedecendo, por isso mesmo ao Governo.
Sem contar as dezenas e
dezenas de assassinatos a sangue frio, vinganças em cima de vinganças,
culminando com homicídio, perversamente cruel, do Pe. Inácio Viera de Melo por
motivos políticos. No livro Meus Avós, pág. 167: “1849 a 1851 – Enfrentam-se
Mourões e Melos nos Sertões de Crateús por questões de sobrepujanças. Nestas
intrigas, estavam envolvidos os Feitosas do lado dos Melos e membros da família
do Francisco Fernandes Vieira, o Visconde de Icó (Carcarás) que bafejavam do
lado dos mourões”.
Conde de Sabugosa, em 1735, em
carta ao Governador de Pernambuco Duarte Sodré Pereira, um descendente do
Castelo Garcia d’Ávila ou a Casa da Torre na Bahia, afirmava: “o Ceará tem em
si quantas legiões de demônios há no inferno, e já considero que nenhum
ouvidor, fará ali bem a sua obrigação...”
Parece-me, caro amigo poeta
Lourival Veras, que, por aqui, os demônios continuam bem soltos, como na época
da velha e poeirenta Vila. Num desses programas de TV, que mostram a violência
do dia-a-dia nas cidades, o entusiasmado repórter narrava um acidente na
capital cearense: “O elemento evadiu-se rapidamente do banco e começou a
perseguição policial. Não deu sorte, pois na fuga em alta velocidade, o carro
foi a se chocar num poste, vindo o elemento a falecer no local, e anuncia os
dados do fugitivo: Fulano de tal, solteiro, 21 anos, natural da cidade de
Crateús, cartãozeiro que tentava instalar um “chupa-cabra” numa destas máquinas
eletrônica de uma agência bancária. O Nome do “Fulaninho” não me era estranho e
recordo ter sido meu aluno, medianamente esforçado e tranquilíssimo, num dos
colégios da cidade.
Recordo que tudo começou no
seio de uma única família de sete irmãos, afeito aos Mourões, só necessitou de
uma bagatela do irascível sabor violento, como uma pitada de fermento que
contamina toda a massa.
E as notícias, envolvendo o
nome da cidade pelo mundo, não são nada alvissareiras: “Um cartãozeiro foi
fuzilado na calçada de um supermercado localizado na Av. Santos Dumont, no
bairro Papicu, em Fortaleza, no início da noite desta quarta-feira. De acordo
com a polícia, o cidadão da cidade de Crateús, de 42 anos, era o cartãozeiro
mais conhecido da polícia do Ceará. Noutro importantíssimo jornal: Foi
deflagrada, na cidade de São Paulo, a operação “Boca de Lobo” onde foram presos
cinco cearenses, das cidades de Novo Oriente, Crateús e Independência,
conhecidas como triângulo dos Cartãozeiros. Antes, os acusados tinham instalado
um aparelho de leitura e filmagem conhecido como “chupa cabra” em um dos caixas
eletrônicos da agência e, de acordo com o delegado titular da 20ª DP, os golpes
aplicados pela quadrilha podem chegar a R$ 1 milhão. O Delegado, ironicamente,
ainda perguntou na frente das câmaras de TV: - Gostaria de saber onde fica essa
Faculdade de Cartãozeiros, se é em Crateús, Novo Oriente ou Independência!
Enquanto
isso, pelas ruas da cidade, alguns jovens desfilam, vistosamente, em Dodge Ram,
Fiorinos e Camaros, estimulando o desejo na imatura juventude à incautas e
perigosas aventuras em busca da satisfação imediata de seus anseios.
É
meu caríssimo poeta, a indignação é uma moeda rara nos dias de hoje. Quando no
recente Carnaval, pelas ruas da cidade, uma colombina puxou de uma peixeira do
cós e esfaqueou outra animada foliã, por um simples olhar atravessado, percebi
que o bom senso e o equilíbrio de nossos dias estão, irreversivelmente, sem
controle.
Tá
lá, mais um corpo estendido no chão! Mas vale seu grito de alerta, poeta, pois
a violência não se restringe aos atos físicos, ela vai muito além, a maior
violência está presente na omissão dos mais poderosos quanto à defesa dos mais
fracos em seus direitos à moradia, liberdade, salários justos, saúde e
educação.
Por
enquanto, meu digníssimo Dom Quixote, vamos nos sublevando sim, pois a
indignação ainda é o ato dos seres mais nobres!
É vero, meu caro! Há muita safadeza, mas a desigualdade é gritante e o poder público omisso contribui muito para essa violência constante!
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